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MAESTRO LÁZARO WENGER (in memoriam)

Somente quem teve o privilégio de conviver com essa figura inacreditável, enciclopédia ambulante e que tanta falta faz, sabe do que estou falando. Foi graças a esse cidadão do mundo que hoje posso me dizer cantor e professor de canto. Ele simplesmente foi o responsável pela continuação dos meus estudos, e para quem ficou curioso em saber o motivo, segue essa história que mais parece cena de filme de música de Hollywood.
Eu comecei tarde no canto, e isso criou um problema maior, porque você tem que aprender rápido, não pode perder tempo se quiser chegar num nível alto. Isso também gera uma ansiedade, quase uma obsessão (que sinceramente não acredito ser possível ir em frente sem ela) e como eu disse, uma tensão permanente que leva você a pensar em desistir por várias vezes, visto que resultado rápido no estudo do canto é algo bem relativo. No meu caso, teve um momento crucial, um divisor de águas, onde os meses passavam e não rendia, nada mudava, nada acontecia. Tomei então a decisão definitiva de parar de cantar e é aí que entra o nosso ilustre Maestro Lázaro:


Era o dia em que eu fazia um ano de casado. Combinei com a minha mulher de jantarmos num restaurante chamado Las Leñas. Era uma noite feliz, mas para mim também triste porque eu tinha comunicado a ela que havia desistido, que era difícil demais, etc, então pairava uma certa melancolia no ar. Fomos para a parte de cima do restaurante onde não havia ninguém, apenas um piano vazio.

Durante o jantar a conversa girava em torno da decisão que eu havia tomado, se era acertada ou não, etc, e a noite seguia em frente. Nisso, entra aquele senhor de óculos, grandão, com uma pasta na mão, nos cumprimenta, senta-se ao piano e começa a tocar. Nada de mais, até o momento em que ele começou a tocar algumas canções napolitanas que faziam parte do meu repertório. Naquelas alturas a comida começou a não descer direito e conforme ele tocava, eu ficava cada vez mais ansioso, e aquilo foi crescendo, crescendo ao ponto de eu nem conseguir me concentrar mais em nada. Para acabar comigo de vez, ele começa a tocar "O Sole mio" e nessas alturas o restaurante já cheio não foi motivo para que eu não cantasse de lá da minha mesa mesmo, a frase final da canção com toda a força.

Todo mundo olhou pra nossa mesa com aquela cara de "quem é esse doido?", inclusive o próprio maestro que já em seguida abriu um sorriso e com um sinal me mandou continuar na próxima que era "Torna a Surriento". Cantei toda ela e ele bastante surpreso me chamou para conversar. Me perguntou logo de cara se eu sabia alguma ária de ópera e eu disse que sim, e então fizemos "Una furtiva lagrima".

No final ele sorrindo me perguntou com quem eu estudava, e eu disse que naquela noite havia decidido largar tudo. A reação que ele teve e o que me disse foi totalmente inesperado para mim, pois o rosto se avermelhou e ele realmente irritado me disse algo como: Quem você pensa que é para desistir? e me disse também que quem tinha uma voz como a minha não tinha "o direito" de não cantar.

Eu fiquei meio atônito, sem saber o que dizer e ele tira um cartão com telefone e me diz: Quero você amanhã neste endereço, tal hora, que você vai estudar com o Ivo Lessa, e ai de você se não aparecer!

Aquilo parecia tão estranho, incomum, e tão pouco provável, que acabei conparecendo e comecei assim o trabalho árduo da formação da voz, e foi lá que conquistei as primeiras vitórias, identifiquei as primeiras sensações de colocar a voz "no lugar", e foi graças a essa "bronca" que eu não parei mais.

Uma dívida com o maestro, sem dúvida, por isso compartilho com vocês esse episódio para que saibam ao menos um pouco, quem foi Lázaro Wenger.

Obrigado Maestro.


IVO LESSA (in memoriam)

Falar de Ivo Lessa não é fácil. Mas eu começaria com a frase: Ele não era perfeito! Alguém é? Tinha os seus defeitos, entre eles um temperamento explosivo e frequentemente direcionado para a pessoa errada.
Era capaz de atos de extrema generosidade e de acessos de raiva sem explicação.
Mas me atendo ao canto que era a grande paixão da sua vida, aí é que as diferenças se manifestam. Esse cidadão tinha uma coisa que poucos tem, que é a capacidade de realizar, de fazer as coisas acontecerem. Tem gente que tem muita fama mas não tem grandes realizações no currículo. Vivem em cima do nome que tem, mas no fechamento da conta, não fizeram muita coisa significativa para o todo.

Depois que as coisas já estão instaladas, usar é fácil. A dificuldade está em ter a idéia primeiro, lutar para conseguir e conseguir. Assim era Ivo Lessa, um cara com idéias mirabolantes, as vezes além das possibilidades, mas que por pensar sempre no impossível, conseguiu fazer o máximo possível.

O nome dele sempre esteve presente nas grandes realizações musicais em Curitiba, entre elas a criação da orquestra e as melhores montagens de ópera já feitas por aqui.
Tive a oportunidade de conviver com ele como aluno, como amigo e na luta para tentar fazer as coisas acontecerem em Curitiba com a Acord, onde fui Diretor Executivo. No meu tempo, como professor de canto era uma pessoa que não forçava os limites, que me abriu os olhos para vários detalhes importantes e que me deu a base sólida tão necessária.

Nos últimos tempos que convivemos ele tinha o cachorro mais feio do mundo. Quando ficava nervoso ia arrancar matos do chão, quase sempre caía na conversa dos operadores de telemarketing, tomava muito chá de carqueja, vivia tentando inventar novos métodos de dar aula. Tinha verdadeira adoração pelo maestro Alceo Bocchino e pela soprano Niza Tank. Gostava muito do tenor Plácido Domingo. Tinha também grande preocupação em divulgar os compositores paranaenses e o sonho de montar a ópera Inocência de Leo Kessler.

Toda a convivência com pessoas de temperamento semelhante é difícil. Tínhamos rompido relações há alguns anos, eu sabia bem a razão mas ele parecia que não.
Fiquei sabendo através de amigos e de alunos de sua cirurgia, do nascimento da sua filha e não faz muito tempo da séria situação de saúde em que se encontrava. Me lembrei de uma das raras vezes em que ele falava dos seus sentimentos, em que me disse da consideração de quase filho que tinha por mim. Torci pela sua recuperação, para que tivesse chance de ficar com a sua filha um bom tempo, pelo menos até que ela tivesse lembrança do pai, mas as coisas tem que ser como devem ser.

Fui a última pessoa a vê-lo ainda com o pouco de vida que lhe restava. Aprendi muita coisa naqueles poucos minutos, em como determinadas coisas perdem totalmente a importância diante da morte.
Muitas coisas foram resolvidas naquele momento, outras para mim ainda estão pendentes e que pretendo resolver honrando a memória do professor, que acertou muito, que errou muito e que foi apenas, humano.

ESTRELISMO X INTERPRETAÇÃO  

Costuma-se dizer no meio musical que chiliques e ataques de estrelismo são coisas do passado, da época das grandes divas e que hoje em dia é até fora de moda esse tipo de comportamento. Na prática não é preciso ir muito longe para encontrar algum deslumbrado ou deslumbrada com a própria voz. Dificilmente algum cantor não conhece um colega meio difícil, que queira sempre estar numa posição supostamente de destaque, ( supostamente pois na maioria das vezes esta posição está apenas na imaginação do “enfermo”).

Devemos lembrar que o cantor é extremamente dependente, seja da orquestra ou do pianista e sempre o que vai contar é o conjunto, ou se preferirem, o trabalho em equipe. Pensar que é o rei ou rainha da voz pode levar a pessoa a fazer verdadeiras macaquices em nome de uma interpretação espetacular. Muitos cantores que começam a despontar mudam totalmente de atitude, passando a achar que os outros lhe devem algo porque ele conseguiu chegar num nível técnico superior, o que não quer dizer que tenha alcançado um nível avançado em interpretação. Cantar notas qualquer um canta, bem como distribuir agudos ao vento.

Várias vezes pude observar cantores que não são tão bons tecnicamente superar outros de técnica impecável, por conta exclusivamente da interpretação. Normalmente os "pavões" que se julgam fantásticos, são cantores de grande capacidade técnica, mas que cantam as canções e árias com a mesma emoção de quem lê uma lista telefônica. Num documentário sobre o grande pianista Claudio Arrau, ele conta que numa época de sua vida, procurava tocar para agradar o público e não pensava na música. Depois de um tempo ele se deu conta de que a receita para uma grande interpretação está justamente em não pensar em outra coisa a não ser alcançar o ponto máximo da música. Quando alguém sobe no palco para cantar uma ária, tem que imaginar como reagiria à situação se ela realmente estivesse acontecendo. Deixar de lado o que quem ouve vai pensar, se fulano de tal está na platéia ou não. O que importa é criar a atmosfera adequada ao que se está dizendo, mas sempre, sempre com o total controle da situação.

TV

Há pouco tempo atrás, mandei uma carta para um canal de tv a cabo onde esporadicamente passa uma ópera ou concerto, pedindo para que pelo menos duas vezes por mês eles colocassem uma ópera completa na programação. Claro que não mandaram resposta alguma e pude ver que não é interessante para eles este tipo de programa. Mas o que eles não imaginam é como essas exibições poderiam ajudar os estudantes de canto, pois elas sempre vem com a tradução e aí o aluno pode se dar conta realmente do que está acontecendo dentro da história da ópera.

Sem contar que tendo acesso a essa programação, incluindo a exibição de todos os tipos de ópera , seria uma chance ótima de estudo no que diz respeito ao estilo e a maneira de cantar o repertório. Para as pessoas que já conhecem, que lêem sobre o assunto, enfim que já tiveram a chance de estudar em algum lugar e conhecer os diversos estilos dentro da história da ópera, isto poderia ser encarado como inutilidade, mas para aqueles que estão começando e que ainda se perdem neste mundo imenso de sutilezas, seria de grande valia.

Fiquei pensando (e sonhando), que um dia algum canal de tv fizesse um grande concurso de canto lírico em horário nobre e que as pessoas acompanhariam interessadas o andamento, que as músicas cantadas apareceriam com tradução e seriam explicadas ao grande público e que eles ficariam conhecendo grandes compositores brasileiros. Mas claro que isso não se pode nem chamar de sonho e sim de delírio pois isso nunca aconteceria num país como o nosso. Será que o grande público não assistiria? Claro que se o concurso fosse algo como "quem tem a maior bunda" seria um sucesso nacional. Mas infelizmente vou ter que falar e talvez algumas pessoas vão ficar com a vida vazia com o que eu vou dizer... Nem tudo na vida se resume em bundas!! Se você pensou em futebol...


CANTAR NÃO É SÓ CANTAR
Reportagem do Jornal do Brasil de 08 de abril de 2001.
(Clóvis Marques)

A ópera não esperou o famoso emagrecimento de Maria Callas no início dos anos 50, nem a revolução estilística que ela operou no canto lírico, para curtir as mulheres belas e as grandes atrizes. Bem antes, Rosa Ponselle, Claudia Muzio ou a própria Bidu Sayão não eram apenas tipos de beleza, mas grandes dispensadoras de sortilégios cênicos.

Se por muito tempo a imagem do cantor de ópera ficou associada a físico avantajado e gesticulação sumária, esta pré-concepção já não se justifica. Além de silhuetas e rostos atraentes como os que estão hoje nos palcos internacionais - já é mais difícil encontrar uma matrona em destaque do que aviões como Véronique Gens, Renée Fleming, Sophie Daneman ou Magdalena Kozená, para citar algumas - , a demanda é de artistas com garra teatral. A ópera é um patrimônio tão valioso e merecedor de renovação, na Europa, e seu repertório, embora vasto, de tal modo tende a girar em torno de dezenas de títulos rotativos, que nos últimos 30 anos a encenação dos espetáculos sofreu outra revolução. Não dá mais para ver Aída pela quadragésima vez com aqueles cavalos desfilando no palco como se fosse o máximo. A mudança trouxe excessos. Não têm conta mais os casos de desvirtuamento do espírito das obras pelos diretores cênicos, em nome da imaginação. Os cantores cansaram e reagem aos absurdos que lhe são impostos. Agora mesmo esteve em cena no Liceu de Barcelona uma montagem de Un Ballo in maschera de Verdi, na qual a transmissão da idéia de corrupção do poder era confiada à proliferação de vasos sanitários no palco.

Mas a tendência para valorizar o lado cênico da ópera é incontornável. E contribui para o enriquecimento do canto, que não é pura emissão de belos sons. Hoje os cantores de ópera são atores. Em entrevista recente, a soprano finlandesa Karita Mattila contava como sempre foi visceral sua vivência de palco, e como mergulhou em todos os métodos, de Brecht e Stanislavski a Uta Hagens. Toque decisivo, o cultivo da canção, disseminado pelo disco, ampliou o espectro expressivo dos cantores. Hoje, artistas como Barbara Bonney, Matthias Görne e tantos outros enriquecem sua presença cênica com capacidades expressivas desenvolvidas no laboratório privilegiado que é a canção de câmara, particularmente o lied alemão. Esses cantores que são sobretudo músicos é que se insurgem cada vez mais contra os despautérios decertos encenadores, mas também contra as condições pouco propícias à qualidade que prevalecem no mundo frenético e cada vez mais sub-financiado da ópera. sem tempo para ensaios e a preparação ideal que o concerto permite.